Quando Boris, um labrador de dez anos, se aposentou, no final de 2008, Thays Martinez, 35, precisou encontrar um novo companheiro de caminhada. O escolhido foi Diesel, 2, da mesma raça. "Estamos nos adaptando, e ele é excelente", afirma a advogada, que perdeu a visão aos quatro anos e foi pioneira no uso de cão guia para se locomover em São Paulo.
Adaptação, no caso, é aumentar a sintonia entre ambos, para que o animal leia automaticamente os comandos da dona.
No Dia Internacional do Cão Guia, comemorado em 29 de abril, lá estava Diesel, que estreou na função há quatro meses, no shopping Iguatemi. Ele participou do evento de conscientização promovido pelo Iris (Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social), fundado por Thays em 2002.
Rodrigo Marcondes/Folha Imagem
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Thays Martinez, 35, posa para foto com Diesel, 2, seu novo cão guia; advogada perdeu a visão quando tinha quatro anos de idade
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Ela ficou conhecida como a "moça do cão guia" por ter sido barrada no metrô de São Paulo em maio de 2000. Saiu vitoriosa de uma batalha judicial que fez de Boris o primeiro animal autorizado a guiar um cego pelos trens urbanos da cidade. Um marco na garantia do direito de ir e vir dos deficientes visuais.
Há muito a conscientizar e pouco a festejar sobre o assunto. Treinado nos EUA, Diesel é um dos 60 cães que guiam deficientes no Brasil, enquanto existem quase 2 milhões de cegos no país, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Só no Iris, mais de 2.000 pessoas esperam na fila por um cão guia. Um dos motivos da espera é que poucas ONGs brasileiras se dedicam ao treinamento. É o caso do Instituto de Integração Social e de Promoção da Cidadania (Integra), localizado em Brasília, que desenvolve o projeto Cão Guia de Cegos, desde 2002, em parceria com o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal.
De lá, saíram 26 cães guias que estão espalhados pelo Brasil. "Podemos capacitar mais, só que faltam recursos", diz Michele Pöttker, coordenadora do projeto que tem patrocínio de empresas como Bayer e Premier.
A ONG tem mais de 250 pessoas cadastradas para receber um cão. "O treinamento e a manutenção de cada animal custam em torno de R$ 20 mil para a entidade", estima Michele. O usuário não paga pelo cão. As únicas despesas são de alojamento e alimentação no período de adaptação -que dura de 15 a 25 dias. A diária fica em torno de R$ 60.
Já o Iris não realiza treinamento completo no Brasil. O instituto paulistano fez uma parceria com a Leader Dogs, escola de treinamento de Detroit, nos Estados Unidos. "A escola nos doa oito cães por ano, e conseguimos, a duras penas, mandar os deficientes para lá", explica Thays. O parceiro brasileiro banca passagens e um dossiê em inglês contendo informações e imagens do usuário.
O processo esbarra na falta de recursos. "Se fizéssemos o treinamento por aqui, seria menos burocrático e mais deficientes teriam cão guia", afirma. Em 2009, o Iris deve enviar mais oito cegos aos EUA.
O advogado Genival dos Santos, 30, foi um dos deficientes apadrinhados pelo Iris. "Em 2006, fui aos Estados Unidos 'buscar' meus olhos." Layla, uma labrador de três anos e meio, possibilita a vida agitada de Genival. "Ela me acorda todos os dias às 6h. Vamos a uma praça para que faça suas necessidades e seguimos para o trabalho", conta.
Genival trabalha em um banco na avenida Paulista que, segundo ele, trata Layla como "funcionária". "Ela tem uma graminha especial, dentro do banco, para fazer xixi quando der vontade."
Morador do Jabaquara, ele usa o metrô diariamente e fez amigos pelo trajeto. Mas ainda sofre com a desinformação da população: "Layla é sempre distraída pelas pessoas. Acham que ela não saberá me conduzir na escada rolante e na entrada do trem".
Incidente no metrô
A boa vontade pode atrapalhar. Há poucos dias, Genival tropeçou quando ia entrar no metrô justamente porque um passageiro tentou lhe dar a mão. "As pessoas não confiam no cão guia", constata.
Para o treinador Moisés Vieira Jr., há 13 anos na função, a principal característica que um animal deve ter para virar guia é ser fiel ao dono. "Todo cão pode aprender, desde que seja bem treinado e que tenha um comportamento que mescle segurança e obediência."
Foram tais qualidades de Boris que conquistaram Thays. O cão guia era sua sombra e adivinhava suas vontades. O sinal de que era hora de aposentá-lo veio depois de um incidente: Boris não conseguiu desviar a dona de uma escada em plena Paulista.
Resultado: ela bateu a cabeça na escada. "Eu chorava de tristeza, e as pessoas achavam que era de dor", conta Thays, que se deu conta de que era hora de dar descanso a quem lhe serviu tanto.
Para ser um cão guia
- O animal deve ter comportamento dócil e estável, além de ser sociável, atencioso, obediente e de não se distrair facilmente.
- No Brasil, o labrador é a raça mais utilizada, seguida do golden retriever e do pastor alemão, que é a preferida no exterior.
- O cão selecionado vai para a casa de uma família, onde permanece por até dez meses. Em seguida, volta para a escola e fica de seis meses a um ano em treinamento específico com os treinadores.
- Por fim, o animal treinado passa por um processo de adaptação ao usuário, de forma que o deficiente encontre um cão adequado às suas necessidades.