Duda, idade estimada em oito anos, percebe a aproximação da tutora pelo olfato. Levanta, abana o rabo, saracoteia. Vira-se para lá e para cá, desnorteada, esperando o afago que vai indicar a posição exata de Marcia Simch.
— Cadê a minha velha? — saúda a dentista.
Cega e surda, Duda é um dos cinco "museus" — apelido afetuoso dado pela dona — que habitam o amplo pátio da residência no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Uma das fundadoras da organização não governamental Bicho de Rua, Marcia não resiste aos animais geralmente ignorados nos cadastros e feiras de adoção: idosos, com deficiências e limitações físicas, de saúde debilitada por maustratos e enfermidades crônicas. Abastece-se da satisfação de testemunhar os progressos na recuperação e da lealdade que recebe na troca pelos cuidados. Estima já ter resgatado cerca de 15 velhinhos. Hoje, além de Duda, convive com Pitico, 10 anos, Piki, 11, Kito, 13, e Caco, 16 — este último batizado em referência ao estado em que se encontrava, na Avenida Carlos Gomes, quando Marcia o resgatou.
— Brinco com o veterinário que tenho o "plano 100": sem rim, sem baço, sem olho. Se reunir todos, vira um completo — ri. — E eles são uns sem-vergonhas também.
Kito é o pet mais fragilizado no momento. Com a descoberta de um tumor, teve um dos rins extraído há um ano, situação que hoje requer duas sessões semanais de fluidoterapia — o soro injetado na veia contribui para a melhora da função renal. Como outros três cães do grupo, Kito tem sopro, um problema das válvulas cardíacas, e toma medicação. Toda a turma recebe cápsulas diárias de ômega 3, ácido graxo que auxilia no equilíbrio do metabolismo e na manutenção das taxas ideais de colesterol e triglicerídeos, beneficiando também a pele e o pelo.
— Adotar o animal idoso é uma escolha mais difícil, mas eles têm toda a capacidade de integrar um lar. A convivência é tão rica que eles fazem muito mais bem para mim do que eu para eles. Sofro mais, porque a vidinha deles já é mais curta, mas dou um final bom para quem teve um começo ruim — explica Marcia.
Como ativista da causa animal, Marcia depara com todo tipo de maldade. Acolheu, há alguns anos, um cachorro usado como presa no treinamento de pitbulls — batizado de Gomes, o híbrido de poodle e cocker tinha um afundamento no crânio e passou quase seis meses internado em uma clínica, recuperando-se de bicheiras.
— Tem situações em que me pergunto: que humano é esse que faz isso com um animal? — reflete a cuidadora. — Mas não adianta ter pena. A pena tem que se transformar em ação.
Entre o tratamento e o sofrimento
A impressão que se tem é que, hoje, os animais sofrem de doenças que inexistiam, ou eram raríssimas, até alguns anos atrás: câncer de próstata, diabetes, problemas na coluna. Cães e gatos sempre tiveram e ainda têm enfermidades desconhecidas, mas os aparelhos e as técnicas de diagnóstico vêm se aperfeiçoando muito. Aumenta também a disponibilidade e a vontade dos donos em pagar por tratamentos capazes de permitir que os pets vivam mais. Os bichos se submetem a tomografias computadorizadas, raio X digital, endoscopia. Existem especialistas em cardiologia, neurologia, nefrologia e oncologia. Dependendo do diagnóstico, os animais são encaminhados a centros de reabilitação para sessões de fisioterapia e acupuntura.
Os tratamentos podem ser longos e, no caso de enfermidades crônicas, se estender por toda a vida. No caso de situações mais graves, em que o tutor hesita diante dos custos com internação, exames e remédios, o médico veterinário Valério Gonzales Ouriques afirma que os resultados podem ser surpreendentes, até mesmo quando a expectativa de sobrevida não é muito grande.
— Tem pessoas que dizem: "Ah, para que fazer isso se ele não vai durar"? Se você tira um animal do sofrimento e consegue dar a ele mais uns meses ou um ano de vida com qualidade, a interação que ele vai ter com você é impagável — garante Ouriques.
Diante de tratamentos ineficazes e da piora da condição de saúde do pet, que se torna incapaz de realizar os movimentos mais elementares, por vezes cabe ao dono a decisão de interromper o sofrimento. Para a veterinária Márcia Brites, deve haver uma discussão sobre até onde ir:
— Cada pessoa lida com a perda de forma diferente. A opção pelo sacrifício deve ser uma decisão conjunta com o veterinário.
A convivência com um animal é muito rica também para as crianças. Observar que os bichos cumprem um ciclo, como os humanos, ensina que a existência é composta por sucessivas fases até a morte. Lidar com a perda, ainda que doloroso, é um aprendizado essencial.